Ser mãe, ser pai, desafios na contemporaneidade
- fbotterdesign
- 22 de mai. de 2023
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· Frente a tantas transformações nos papéis femininos – e consequentemente na família – ocorridos nos últimos sessenta anos, a questão sobre os cuidados com os bebês foi se impondo como urgente.
· O mundo contemporâneo nos desafia diante das indefinições, das incertezas, nas infinitas possibilidades de arranjos na vida, nos papéis sociais, etc. Por um lado, isso nos abre para uma liberdade muito maior de existência, para a possibilidade de transitarmos de um estilo a outro, de uma crença a outra, em lugares sociais diversificados; porém, por outro, também nos deixa sem referências, à deriva, especialmente quando atravessamos períodos da vida em que a turbulência e a incerteza já são predominantes, como ocorre no início da vida e quando nos tornamos pai e mãe.
· Diante das mudanças culturais que levaram a significativas alterações no modo de ser mãe e no modo de funcionamento psíquico que lhe é correlato, a psicanálise parece ser um recurso eficiente, tanto para compreender essas mães – o que sentem, como se sentem, o que desejam, o que temem, o que trazem de novo para essa função.
Diante de tantas transformações nos papéis femininos – e consequentemente na família – ocorridos nos últimos sessenta anos, a questão sobre os cuidados com os bebês foi se impondo como urgente. Se antes era natural que a mãe biológica cuidasse deles, isso deixou de ser o óbvio, e outras alternativas precisaram ser construídas. A mãe não está mais disponível em tempo integral para essa função (ainda que haja exceções), deve (e quer) retornar às suas atividades profissionais, e há outros interesses para além da maternidade, ou seja, a família e a sociedade têm tido que inventar novos dispositivos e repensar os papéis familiares para dar conta dessa questão.
Além das mudanças nos papéis, é preciso considerar os novos modos de subjetivação, tanto nos homens quanto nas mulheres, que são característicos dos tempos atuais, as implicações disso para o exercício da maternidade e da paternidade, e para a constituição psíquica do novo ser.
Atentos a essas transformações nos papéis femininos e interessados nas condições para que o vínculo precoce mãe-bebê possa ocorrer em condições satisfatórias para ambos, nos propomos a pensar sobre um fenômeno que notamos crescente, nos últimos anos. Trata-se de mulheres que referem, de modo mais contundente do que em outros tempos, suas aflições quanto às restrições que a decisão (ou o acaso) de se tornarem mães lhes impõe. Estão entre 25-40 anos de idade e tiveram ótimas oportunidades em suas vidas, tanto no que se refere ao campo acadêmico e profissional, quanto a atividades culturais e de lazer, conquistando grande liberdade pessoal. Algumas, ao mesmo tempo em que expressam o desejo de se tornarem mães, assumem certa indisposição para receber o filho e atendê-lo nas necessidades dele, temendo que venham a perturbá-las em suas rotinas já tão estabelecidas. Tendem então a nutrir certa expectativa de que os futuros bebês possam se adaptar à família e não o contrário, como nos ensinam Ferenczi (1928) e Winnicott (1990, 1994). Há também mulheres que incluem o projeto de formar uma família como mais um item a ser cumprido dentro dos ideais de certo grupo social ou familiar, sem que o desejo próprio do casal, de fato, mova essa decisão.
É indissociável pensar o desenvolvimento emocional de seu contexto histórico e sociocultural; assim é necessário identificar a relação entre o fenômeno cultural, que são os novos modos de exercer a maternidade, e seus efeitos no psiquismo da díade mãe-bebê. É preciso ter em conta que esse novo modo de ser mãe tem como contexto uma sociedade cujos laços simbólicos têm se tornado muito tênues, assim como os vínculos entre as pessoas.
Em seu livro Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação, Birman (2007) se propõe a empreender uma cartografia esquemática desse mal-estar na atualidade, valendo-se, para tanto, do instrumental teórico da psicanálise. Nessa obra, ele afirma que, nas últimas décadas no Ocidente, é possível constatar “uma fragmentação da subjetividade e que além de ser uma nova forma de subjetividade é a matéria-prima por meio da qual outras modalidades de subjetivação são forjadas” (p. 23); em todas essas maneiras de subjetivação, o eu se encontra situado em posição privilegiada, no centro das questões.
Recorrendo a Lasch (1979) e Debord (1992) e suas formulações sobre a cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo, respectivamente, Birman (2007) afirma que os “destinos do desejo assumem uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas”.
Os valores individualistas, a entrada mais legítima da mulher no mercado de trabalho (não mais por necessidade, mas por projeto de vida), o advento da pílula anticoncepcional e com ele o controle dos nascimentos, foram definindo o novo lugar da mulher, marcado pela livre escolha individual. “O reconhecimento social do trabalho feminino traduz o reconhecimento do direito a uma “vida sua”, à independência econômica, na linha direta de uma cultura que celebra cotidianamente a liberdade e o maior bem-estar individual (LIPOVETSKY, 2000).
Esse novo tempo, o da Terceira Mulher, como nomeia Lipovetsky, é resultado de um longo caminho de enfrentamentos e de mudanças, tanto no reconhecimento social do trabalho feminino, quanto dos direitos da mulher, da relação entre os sexos, etc., tais mudanças revelam três fenômenos de fundo, de acordo com Lipovetsky (2000): o poder feminino sobre a procriação, a “desinstitucionalização” da família e a promoção do referencial igualitário do casal.
Aqui está presente tanto o elogio ao livre governo de si, que é proclamado para todos, homens e mulheres, ao enfraquecimento das instituições que orientavam a vida até a modernidade e a insurgência da mulher como sujeito e, portanto, com direitos legítimos e equivalentes aos dos homens.
A ideia do livre governo de si, na análise de Lipovetsky terá significativa força impulsionadora no advento da figura da Terceira Mulher, que ele chamará de “a mulher indeterminada”.
Essa mulher indeterminada, convocada a inventar-se e reinventar-se fora de qualquer código ou imperativo social, quando se torna mãe, também deverá inventar seu próprio modo de ser nesse papel, inventar-se também como mãe. Aqui surge um impasse. A experiência de tornar-se mãe implica um processo regressivo, que mobiliza intensamente conteúdos primitivos, não elaborados, estado que muito se beneficia quando compartilhado por outras mulheres que possam acolher, que reconhecem o momento e podem ser capazes de ressignificar, acompanhar, dar continência e sustentação ao processo e à díade mãe-bebê. Um estado, portanto, que parece incompatível com o individualismo dos tempos da autogestão.
Cabe questionar que modelos possíveis nesse novo tempo podem estar surgindo para dar conta dessa necessidade ou se ela estaria sendo negligenciada?
Como diz o provérbio africano (e sabemos bem), “é preciso uma aldeia para criar uma criança”, a aldeia ajuda a ligação, cria possibilidades da vinculação mãe-bebê, cuidando da mãe e deixando a mãe cuidar de seu bebê. Mas ela também ajuda na separação, ao convocar a mãe para sua participação no mundo comunitário, tanto através dos afazeres quanto por redespertar o desejo pelas coisas do mundo, assim ela pode voltar-se aos poucos para outros interesses e o bebê pode começar a aprender a ficar só, tendo a mãe internalizada, “o ego auxiliar da mãe (introjetado)”, nos termos de Winnicott (1983).
O mundo contemporâneo também nos desafia diante das indefinições, das incertezas, nas infinitas possibilidades de arranjos na vida, nos papéis sociais, etc. Por um lado, isso nos abre para uma liberdade muito maior de existência, para a possibilidade de transitarmos de um estilo a outro, de uma crença a outra, em lugares sociais diversificados; porém, por outro, também nos deixa sem referências, à deriva, especialmente quando atravessamos períodos da vida em que a turbulência e a incerteza já são predominantes, como ocorre no início da vida e quando nos tornamos pai e mãe.
As funções parentais ficam ainda mais difíceis quando precisam ser exercidas na solidão, sem uma rede de apoio, de referência, mais ainda sem modelos identificatórios. É nesse contexto que surgem os mais diversos estudos sobre a “parentalidade”.
Considerando o contexto cultural da atualidade, com a quebra dos valores rígidos, estáticos e a abertura para as múltiplas possibilidades de subjetivação, de modos de existência, o vir a ser mãe e pai precisa ser criado, inventado a cada nova experiência, dependendo muito mais da história individual de cada um dos pais e seus processos singulares de subjetivação, estando quase ausente uma herança do “como ser” ou “como exercer” tais funções, presentes nas famílias tradicionais do passado. Talvez por essa razão o recurso a especialistas e a redes sociais[1] foi se tornando uma constante para os pais dessa geração.
É necessário entender esse modo de subjetivação das mulheres que têm se tornado mães na atualidade – seus anseios, os impasses que vivem, o modo de lidar com a maternidade e os desencontros que parecem estar ocorrendo com as necessidades do recém-chegado, pelo fato de elas estarem imersas num mundo veloz, imagético, midiático, espetacular e bastante narcisista, pouco afeito ao ritmo e ao tempo de um bebê.
Pensar o modo de subjetivação das mulheres implica buscar compreender também a subjetividade desses homens que se tornam pais e sua função nesse ambiente, que tem a mãe como objeto primário do recém-chegado, mas que terá muita dificuldade de estar nesse lugar sem um companheiro cuidando da dupla mãe-bebê.
Diante das mudanças culturais que levaram a significativas alterações no modo de ser mãe e no modo de funcionamento psíquico que lhe é correlato, tal como apontadas no texto, a psicanálise parece ser um recurso eficiente, tanto para compreender essas mães – o que sentem, como se sentem, o que desejam, o que temem, o que trazem de novo para essa função –, como em sua eficácia, em termos de técnica e ética, em favorecer mudanças positivas no funcionamento psíquico da unidade mãe-bebê, quando houver suspeita de desencontros que podem levar a riscos para o processo de constituição psíquica das crianças, bem como para a saúde mental de suas mães.




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